17/12/2007

Antinomia de mim


Delineio semânticas que expressem intencionalidades nos escritos que faço. São negativas, melancólicas, expoentes daquilo que sou. Embora talvez nem seja. De fato, crio mundos, percepções, confissões que não me traduzem ou sim. Não são auto-retratos ou são.

Nessa contradição permanente, esboço dicotomia, antinomia de mim. E por ser antagônica é que me faço ou não. Só existo na duplicidade proeminente que improvisa um mosaico, espelho de meu reflexo. Sou fractal. Pedaços que moldam esse todo compreendido somente enquanto tal.

Nacos de anseios, quereres, desilusões, alegrias e esse tudo-nada que me perfaz, complementam minha concretude. Substância errante perdida nos corpos fluídos das volições e angústias aconchegadas no colo escolhido para alentar a intensa profusão de ser.

Essas são expressões que germinam em momentos singulares, palavras jorradas da insana penúria de ambicionar e, muitas vezes, não poder objetivar subjetividades que, para outros, acabam não tendo significado.

Exponho-me a escrever porque nas letras encontro a matéria prima das caricaturas de alguém tão solta no mundo, que precisa se testar. E lego essas divagações ao efêmero ato de fazer daquilo que não é o que possa ser; do que possa ser o que não seja. Escrevo para transbordar esse eu dialético-dialógico transcendente e inesgotável. Sou não sendo.





Imagem: Teresa Zafon

29/11/2007

O que é


Era pra ser vento efêmero que tinge o rosto de tempos vindouros ou lembrança passageira se acomodando em istmos de ontem e depois. Nada além de rajada lunar a clarear as noites boêmias poderia ser. Nem mesmo fagulha solar incendiando um lindo sorriso na face inóspita. Devia ser breve como chuva equatorial, fugaz frente fria que toma conta dos trópicos vez por outra.

Acabou sendo verão na metade dela que era inverno e refrescou a parte coruscante que a levava por caminhos desconhecidos em busca de algo que nem se sabe. Criou raízes fundas, fecundas e todos os dias brotam pétalas de quereres, punhados de sonhos, rios de ilusões.

Folhas de esperança germinam cotidianamente desde então. São alimentadas pelos riachos de todo dia que regam suas raízes de amanhã.





Imagem: Kharlamov Sergey

09/11/2007

Turbilhão


Não quero saber desses redemoinhos que agitam as noites trazidas no peito. Noites? Mas é dia! Não. Breu meu interior. Quero óculos escuros com proteção UVA/UVB, para impedir que a radiação emitida pela angústia corroa essas retinas que ainda extrapolam o vazio que carrego. Os cílios precisam ser bem cuidados -varrem a poeira de tudo que encontro pela frente. Droga de pensamentos confusos! Que texto é esse? Ah! Estou tentando falar do turbilhão que sacoleja as entranhas, cerração da alma. É dia! Fico pior durante o dia. A claridade ofusca as pestanas carcomidas pelas traças que se acumularam ao longo de minha cegueira e as pupilas que tanto protejo, mofadas pela umidade das lágrimas constantes escorrendo no leito de meus ais. Hoje bateu vontade de olhar pra trás, cruzar outras veredas. Anseio de escancarar janelas, vislumbrar novos horizontes. Madrugada! Nas noites insones divago alucinada, querendo fazer da vida passada o que não mais pode ser. Vou esperar a aurora. Quem sabe, ao acordar desse devaneio real, possa sentir o cheiro do vento trazendo boas novas. Talvez o calor da estrela tenha gosto de novos abraços. Meus braços dando voltas em mim. Fungos morrendo e bactérias vencidas pelo antídoto que hei de encontrar. Se meus óculos com proteção UVA/UVB permitirem ver o sol raiar.







Imagem: Mariah

29/10/2007

Missiva


Nunca mais! Entendeu?

Já disse que meus olhos não alcançam mais tuas retinas; que, surda, ignoro o eco das letras que chegam por um carteiro qualquer e meu tato se excita em sentir o prazer mórbido de triturar tuas palavras.

Eu avisei que amor não se alimenta de rabiscos ou de suspiros. Aliás, não sei do que se nutri e nem me interessa. O que entendo mesmo é que amor existe na cotidianidade das horas, nos interstícios da vida. Não tem conceito, definição. Vivi-se simplesmente. E mais, alertei que o fogo da nossa paixão reluzia por conta das cinzas, ainda quentes, que éramos quando nos encontramos.

Mas nada foi suficiente. Não ouviste as linhas, entrelinhas, frases e palavras soltas por essa boca que ansiava por teu toque, nem o silêncio gritante que se mostrava toda vez que meu corpo se delineava ao teu.

Sinto muito. Não me venha pedir pra esperar. O tempo é traiçoeiro e as noites, intercaladas aos dias, não me permitem tamanha sensatez. Além disso, sempre fui espaçosa, solta e tu sabias. A paixão que nos unia era resquício de nossas cinzas, eu já era pó quando chegaste.

Ora, poeira é coisa errante, dispersa. Alastra-se por todos os cantos, mas nunca deixa de ser – só se mistura às comparsas que vai se deparando nessas viagens incessantes. Sou mosaico de tudo que encontrei por aí e filha da noite também. Lembras? O brilho do luar me faz cintilar e quando o dia chega, renasço - sempre nova.

Em meu peito não tem mais lugar pra ti. É um novo peito, nova carcaça. A veste que te cabia, nem uso mais. E se tenho vontade de rasgar tuas cartas, é porque não encontro nelas vestígios de ti nas longas declarações que sussurram. Essa que te responde, não é mais aquela que deixaste. Tu nem existes pra mim.

Adeus.





Imagem: Sue Anna Joe

23/10/2007

Surreal


Deixo rastros ao léu em busca de coisa alguma que mate a sede insana habitante desse vazio cheio de tudo que me perfaz só pra seguir trilhas incertas em direção ao cais de anseios que construíste enquanto encantado por meu contorno e silenciar tua metademundo ancorando esse corpo em minhas entranhas fazendo de eu mesma morada das vontades camufladas na outra metade de ti que é o perder-se e bem sei do vento caçador dos desejos que trazes tentado roubar dessa arquiteta ilusionista o substrato de teu ser e mesmo assim não canso de esboçar no mundo do adeus momento de chegada nem fico esperando dia de volta se és o nada que preenche meu tudo e tudo que jamais tive porque só existes nos devaneios oníricos que perturbaram meu sono ontem à noite.









Imagem: Floriana Barbu

17/10/2007

Germina


Vive de calmaria como lago sem correnteza, ancorando idílios no cais da sensatez. Nunca desvia das pegadas deixadas ao longo do caminho - que é sempre o mesmo - ou atiça vontades prisioneiras nas algemas que ela pôs. Temerosa de se lançar em qualquer coisa - permanece flutuando na nuvem ilusória que criou pra si.

Decorou de branco todo o ambiente para que as cores não excitassem as retinas e cobriu-se de muralhas arquitetadas com a argamassa das coisas apaixonantes que desprezou. Sentia proteção no acolchoado etéreo dessa morada altiva e incólume, como se fosse possível castelos no ar. Diariamente ensaia uma dança insípida ao som do silêncio mordaz – única companhia na masmorra de si.

Maria optou pelo exílio desde que Antonio partiu sem ao menos dizer adeus. A ataraxia, forma de suprir a falta deixada pelo contorno antes moldado ao seu. Ansiava pela ausência de dor, como se possível fosse viver sem ela. Não percebia que o revestimento auto-erigido, a mudez permanente e o balé solitário ao som do nada fincavam suas entranhas nas raízes do dissabor.

Depois de algum tempo persistindo nesse luto vão, a agonia dos olhos sedentos de vermelho-luxuriante transbordava pelas pálpebras. Notando a impossibilidade de fugir do interior borbulhante que tem – embora latente, não resiste.

Demole a carapaça que cobre o corpo, tinge de arco-íris seus arredores, canta pra ouvir a própria voz e algo germina do casulo - sai uma metamorfoseada moça de lábios carmim, com vestido decorado por lascívias cintilantes. O chamamento do mundo foi maior que o desprezo e o temor da dor.

Soube que vicissitudes são cordas pra tecer o enredo da vida e os acordes desse aprendizado ecoam violentamente nas planícies que decide conhecer e resistem nos vales dos planaltos esculpidos por ela. Quer ver o mundo de cima e fincar no cume de cada colina um sorriso de esperança e uma pegada sem destino.

Maria - que se afeiçoou aos seus fantasmas, agora borboleta errante nos ares do tempo. E nem tem receio de suas asas derreterem sob a quentura dos dias ou congelarem na frieza da noite. Destemida, enfrenta o vento da incerteza que lhe açoita inteira. Maria não é Amélia, mas virou mulher de verdade.







Imagem: Graça Loureiro

15/10/2007

Autocrítica



Retirei o texto que postei ontem porque nem eu mesma conseguia lê-lo. Estava muito ruim! Vou escrever um decente e colocar aqui pra vocês.
Beijos a todos.










Passe também no Controversos, um blog erótico que fala de amores e humores, que risca a alma com um fio de sangue, que faz estremecer, que trava a boca.







Imagem: Wayne Suffield

06/10/2007

Efemeridade

Não penso nos passos desconexos que risco na estrada dos dias cinzentos, azuis, arco-íris percorridos a esmo. Sou nômade nos desertos que me perfazem, também oásis que nutri após estiagem voluntária. Autofágica, mato e ressuscito vontades insaciáveis; degusto o querer para comer o prazer. Por vezes, nem sei onde estou - se nos bancos de areia de meus ângulos ou nas ilusórias plataformas que encontro na paisagem insólita que me figura. Como miragem, riachos umedecem fissuras da carne, irrigam o viço e atiçam a vastidão das retinas. Revigorada, vislumbro a linha de meu horizonte, sigo a desenhar caminhos fugazes nos grânulos arenosos, partículas elementares de meu corpo. Duna, nunca alcanço meu contorno - linha divisória do início e fim dessa jornada interior, fronteira imaginária. Fugaz e transitória, no momento em que me vejo, já me perdi


de mim.


01/10/2007

Não mais

Resquício das lágrimas vertidas intencionalmente para obstruir teus passos, submergir a resolução e dissolver o tempo. Assim ficaria em ti, se fosse possível. Em teu corpo, um mosaico de apelos. Factais de tristeza.

O fenecimento do lampejo nas retinas de minhas janelas - brotado efemeramente no horizonte - para que vislumbrasse a ausência, lugar de tua morada, não compreendi. Segui adornando de quimeras o que não mais era.

Do querer insano, resíduos recheando a lacuna de teus contornos restará. E também o eco dos gemidos de dor a contaminar os orifícios auditivos que levaste. Riscarei tua carne - diariamente - com o fio de cabelo que grudou na roupa que vestias e não perderá meu vulto nos anseios que tiveres.

Assim, tatuarei a saudade no lado esquerdo de teu peito, plantando a vontade na memória. Retornarás pela mesma estrada - construindo atalhos que encurtem o caminho - só para que o tudo de ti encontre o nada de mim.

É que vazia e despedaçada, iniciei a colagem do que me restou abandonada. Quando chegaste, meu olhar não reconheceu a face antes tão querida e os fragmentos que deixei contigo, não mais se encaixam nessa forma que montei só para me encontrar depois de me perder em ti, meu desgosto.



Imagem: Teresa Zafon

27/09/2007

"Intertextualidade", ou outra palavra qualquer


A Frase: " Mesmo se eu disser que a lua é uma porta de diamante, ninguém verá como eu vejo este próximo esplendor até o distante horizonte."

Atendendo ao pedido da Bina:

Pegar o livro mais próximo;
abri-lo na
página 161;
procurar a 5ª frase completa;
postar a frase no blog;
não escolher a melhor frase nem o melhor livro;
e,
finalmente, repassar o desafio para cinco blogs.


E os
cinco blogs escolhidos são:

Contém Açúcar
*Pensamentos Quebrados
Um Blog Amador
Oncotô?
Prosa Eletrônica

23/09/2007

Reflexo


Era ao reflexo que recorria quando precisava encontrar algo perdido em seu interior. O espelho servia de alter, a outra margem do lago estéril que se tornara. Encara. Não encontra nada além da secura que assola suas retinas.
Experimenta a sensação de ser um pedaço de chão semi-árido. Até a cisterna - depósito de sonhos - está vazia. Estiagem se estendendo além da conta. Desidratada, economiza lamentos.
Indiferença o que restava.
Muitas vezes, desatinou em busca desse gêmeo desgarrado – sua representação - que se recusava a aparecer, deixando estéreis seus momentos. O nada, ausência da presença contida no outro que era ela.
Agora - ao menos - descaso, insipidez na alma, fusão dos anseios tatuados na memória, breu a vedar as janelas do corpo. Impressões desaparecidas e um hiato que divide a si mesma.
Cega, por conta da profusão de desejos; surda, na superabundância de tristes ais; muda, frente ao alucinado grito que lhe furtara o tato da docilidade, o gosto da alegria e o cheiro da esperança.
Vastidão que brota na tessitura do mundo. Planaltos delirantes com picos a exibir, orgulhosamente, todo o sugar da vida. Sempre foi voluptuosa, enraizada na fome incessante do movimento. Arquiteta de idílios, moldava sua intimidade com maestria.
Hoje: insensiblidade. Correnteza desviante de todas as suas cobiças.
O banheiro, todo branco, contrasta com o carmim predominante em seus olhos ao relembrar quão prenhe de tudo já havia sido. Acabou por deslizar na íngreme trajetória de sua outra margem que seguia a linha horizonte, arrastando suas colinas e deixando uma planície de coisa alguma.
A indiferença não tem cumes. De tão ampla, só o vento passa por ela, sorvendo o querer e o sentir que encontra no caminho.
Num esforço colossal, resgata a voz e grita.
Ao menos poderia ouvir a concretude de seu eco na solidão do espelho que se tornou opaco.





Imagem: Hekate Hek

18/09/2007

Ambivalência


No esquecimento, a saída. Agora, diante do mar, o vai e vem das ondas ressuscita o amargo da saudade. Logo ela, que envernizara o coração e a memória. Tudo para não cair no buraco negro da ausência. Negava-se a ser conduzida por algo sem domínio. Suplicou que ficasse, antevendo a dor. Nada impediu o ímpeto desbravador de sua metade que, desde então, é nômade. Rastreia o não vivido, consumindo a vastidão com voracidade alucinante. Hedonista, busca gozos ininterruptos. Viaja com algemas e correntes para aprisionar seus deleites. Enquanto isso, em frente ao mar, o balançar das ondas dissolve o fel que esbarra na impermeabilidade daquela que ficou sozinha. Não houve consenso entre a racionalidade comedida e a emoção dissoluta. Jamais conseguiram conviver. Helena era incapaz de compreender sua personalidade. Não decifrou os anagramas metódicos, nem vislumbrou a forma das mal traçadas linhas que perfaziam seu ser. Da incongruência de suas facetas, restara a sina dos andróginos, separados pela ira de Zeus: incompletos, sôfregos na busca incessante da metade perdida, porém almejada. Só assim enxergou sua policromia, seus mosaicos, fragmentos, fractais. Sentiu que se vive mesmo é nesse caos ordenado. Quando a emoção retornou – exausta da andança, não reconhece a razão. Essa, envernizou a memória, o coração e sua face ficou distorcida pela covardia de quem se precipita no abismo da indiferença por medo de viver. Era tarde demais. E vai a busca da metade perdida no conflito subjetivista de Helena. A emoção aprendeu que viver é ousar. Quem sabe não encontra seu complemento em outra tez? Salta na vida sem pára-quedas.



Imagem: Monika Eichert

12/09/2007

Ausência


Foto: Paulo Madeira



O tempo suturou as feridas da alma, secou o manancial de lágrimas que jorrava insistentemente desde que ele se fora. Nada lhe agradava além do mundo criado em alucinados devaneios. Seguia desprezando tudo que é corpóreo porque fere. Pintou a memória com as cores mais claras para se guiar no breu que inunda seu interior. Prisioneira imaginária de algo que o tempo enterrou. Oca, vazia até dela mesma, persistindo na insana fuga das mazelas trazidas por sentimentos desprezados. Não vislumbrava o sol que chamusca raios por entre as frestas das janelas de jatobá. Tampouco percebia na noite escura uma estrela que seja a brilhar. Luz que viria de seus olhos, cegos pelo vácuo da ausência e vermelhos como se destilassem sangue ao invés de fulgurar e brindar o sentir, ainda que dores de amores. Festejar a vida, mesmo sofrida. Mas ela, indiferente, peregrina pelo quarto, morada de sua quimera.

09/09/2007

Se ela soubesse...


Continua achando tudo sem graça e não vê nada além de mais uma noite solitária.

Trabalha exaustivamente até o fim do dia e vai para casa. Quando chega, toma a atitude de driblar seu destino e busca fazer algo diferente.

Arruma-se rápido como nunca.

Está com vontade de curtir a vida noturna. Sempre achou a noite mágica. Acreditava que nela tudo acontecia, até o impensável, o improvável, o imprevisto.

No momento em que tenta atravessar a rua em frente ao seu condomínio, passa um carro em alta velocidade. Quase lhe atropela. Por um triz não chegou sua hora. Dirige-se à faixa. Vai ser politicamente correta. À noite nos faz imprudente – pondera, mas naquele momento não quer se subjugar ao domínio notívago. Prefere ficar viva.

Movimenta-se para o bar mais movimentado de seu bairro ao encontro das amigas que batem ponto ali quase toda santa noite.

Entra.

O ambiente turvado pelos cigarros embaça sua visão por um instante. Observa todos os lados e localiza as colegas sentadas numa mesa de canto. Senta e começam um papo daqueles bem típicos de mulheres em mesa de bar: roupas, a fulana que fez lipo, o cara mais bonito sentado do outro lado, o caos na política brasileira e por aí vai. Mulheres conversam sobre tudo em uma mesa de bar.

Angélica precisa ir ao banheiro. Ao chegar, se olha no espelho e percebe quem nem colocou brincos. Decide pedir imediatamente um par emprestado para as companheiras.

Na saída, esbarra em uma mulher de ar misterioso. Parece uma bruxa com essa roupa lilás e olhos tão marcantes. Nossa! Senti até arrepios – pensa. E corre ao encontro de seu desespero - um par de brincos. Consegue com uma que sempre tem um extra na bolsa, para casos como esse.

Volta para colocá-los.

A dona com ar enigmático está pintando os grandes olhos de um preto profundo, tal qual uma noite sem estrelas. Posiciona-se ao lado da que parece uma feiticeira e essa começa a puxar assunto:

- Gosta de lápis preto nos olhos?

-Sim, gosto.

- Você quer emprestado? Precisa se pintar, seu rosto está muito desbotado.

Angélica se deu conta que a ansiedade em não passar mais uma noite como tantas outras, fez com que não se maquiasse.

-Aceito sim. Obrigada.

Depois desse breve diálogo, novamente aquele frêmito. Vou fazer xixi. Já tenho brincos e olhos pintados. Não preciso de mais nada - reflete.

Quando sai do boxe, uma de suas parceiras está lá. Observa que só as duas ocupam aquele espaço e pergunta:

- Andréa, você viu a moça de roxo que estava aqui?

- Não tinha ninguém quando entrei. Aliás, fiquei, forçadamente, observando essa entrada o tempo todo porque minha cadeira fica de frente para cá. Desde quando você veio à primeira vez e voltou para pegar os brincos, ninguém entrou ou saiu daqui. Além você, lógico.

- Mas não é possível! Foi ela quem me emprestou o lápis com que pintei os olhos.

Fica grilada com aquele assunto, mas resolve voltar pra mesa e curtir o bar com as amigas. Sorrir, conversa, toma cerveja além da conta. É tarde. Necessita ir para casa pois trabalha logo mais.

Despede-se e combinam outro encontro para a noite seguinte.

Volta pelo mesmo caminho. Mas depois de extrapolar com a ingestão de álcool, já não tem a mesma prudência. Ao invés de ir pela calçada, anda pelo meio-fio. Observa – em sua pouca lucidez – que quase não tem trânsito.

De repente surge um carro em alta velocidade. Ainda tenta escapar, mas não dá tempo.

A pancada foi tão forte que ela morre na mesma hora.

Não tinha como saber, mas a senhora de roxo e olhos breu era a Morte lhe rondando, louca por mais uma companhia. Não driblou, foi ao encontro de seu destino. Tinha mesmo que sair de casa.

Angélica só acertou uma coisa: à noite nos torna inconseqüentes e traz consigo o improvável, o imprevisto.

Quem poderia imaginar que ela fosse morrer naquele retorno para casa?Trajeto tantas vezes feito. Se ela tivesse ficado no aconchego de sua cama, ao menos sentiria tédio. Mortos é que não sentem nada.

O impensável aconteceu.

05/09/2007

O lado de lá


Foto: Hugo Tinoco






Era um simples dia cotidiano. Sol a pino, carros cortando as ruas numa velocidade alucinante, rostos desconhecidos, esquinas entupidas de gente parada na calçada esperando a oportunidade para chegar à faixa amarela. A ânsia das pessoas em atravessar a rua fazia parecer que o lado de lá era o outro mundo. O lado oposto da seria o portal para o lugar que sempre se quisera ir. Mas que nada! O que todos aspiravam mesmo era só cruzar a rua na frenética convulsão do tempo curto. Tão curto que os passos mal davam pra chegar do lado de lá. E por causa dos passos curtos ela esbarrou nele. Numa dessas esquinas enlatadas. Foi vontade pra todo lado! A dela e a dele. Curvaram-se para juntar os desejos espalhados no asfalto escaldante antes que o sinal ficasse verde e a esperança fosse embora à alta velocidade, matando o inesperado encontro tão esperado. Sim. Há muito tempo esperavam que o acaso se manifestasse. Mas numa cidade assim não é simples encontrar alguém que não se sabe nem o nome. Já decorria bom intervalo desde que tinham se visto em um bar. Daqueles em que as noites ébrias fazem transbordar fulgores que evaporam com os primeiros raios de sol a entrar pelas frestas das cortinas diáfanas que cobrem as vidraças. Num lampejo, seus olhos rasgaram as retinas como uma adaga transpassa o corpo. Os corpos intocados se encaixaram como um anel feito sob medida para uma mão singular. Única mesmo foi aquela noite perdida entre tantas regadas a qualquer ritmo. Nunca souberam dos abalos sísmicos causados no outro. E a vontade agora estava jogada na avenida....o sinal a qualquer momento iria abrir e poderia transformar em cacos o que se mantinha incólume no mais recôndito espaço de cada um. Droga! - pensava ela - Não vai dar tempo! Ele ruminava interiormente. E haja tentativa! O vento não ajudava. O sinal abre. Desesperados, começam a andar em sentidos opostos. Atravessam a faixa. O lado tão esperado, naquela hora não era o almejado. O tempo! O sinal! As vontades que ficaram dissecando sob o sol quente. O tempo curto! Não dava para ficar esperando um inesperado encontro. A cidade, o relógio, os compromissos não permitiam. E os olhos que rasgaram entranhas, os corpos moldados um para o outro - mesmo intocados - foram se perdendo por entre o turbilhão de gente aglutinada na calçada com uma ânsia tão frenética para chegar à faixa amarela e atravessar a rua que até parecia que o lado de lá era o lugar onde sempre se quisera estar. Mas eles sabiam que não era. Não o lado de lá. Talvez o meio, a metade da travessia onde os desejos se encontraram e se esbaldaram no asfalto quente. E ainda estavam lá gemendo, ardendo, agonizando. E ninguém sabia. Nem eles. O que tentaram juntar o tempo todo nada mais era que os documentos de trabalho guardados nas pastas que traziam em frente ao coração e que se espalharam quando tropeçaram. Não deu tempo pra saber de mais nada.


03/09/2007

Sonhos Invertidos


Era uma dessas noites quentes. Mas não era o clima. Era ela. Ardia em seus desejos. Os lençóis, molhados pela água vertida de seus poros dilatados, suplicavam pelo amanhecer. Naquela noite dantesca, seus pesadelos mais gostosos vieram lhe visitar. Sim! O Pecado, espectro ardiloso, não saía de seu imaginário. Roubava toda a sensatez que ela guardara para enfrentar essas tormentas que, vez por outra, assolam as pobres almas. Em sua cama, suspiros ilusórios de um querer. Era só aspiração, vontade, ânsia. Naquele pesadelo gostoso nada tinha sido real. Nem mesmo a angústia de não poder enlaçar o corpo vislumbrado. Os lençóis, coitados, iam sendo rasgados nas tortuosas curvas que seu corpo modulava enquanto viajava naquele momento onírico. Fiapos ao amanhecer era o que seriam. Os desejos também seriam fiapos que nem em pesadelos gostosos - olha a contradição!- puderam ser saciados. Amanhece. Sensação esquisita ela sente. Como se tivessem dopado sua alma e saciado seu corpo. Mas como? Ela se questiona. Saí do bar sozinha. Deixei as meninas e peguei um táxi direto pra casa. Reflete. Recorda-se das taças e taças de vinho que tomara na noite anterior. Nossa! Que pileque! De repente lembra do antigo namorado que havia reencontrado no bar. De uns tempos pra cá, ando tendo amnésia – diz a si mesma – preciso parar de beber. Ah! – suspira e pensa - Aquele homem foi tudo o que não pôde ser. O que não vivi. O que não senti. O que não posso contar. Só queria mesmo uma noite para me libertar desse fantasma que, durante todos esses anos, não me deixou um só instante. Então ela vira para o outro lado da cama e encontra um bilhete. “Não pude ficar até o amanhecer, espectros não sobrevivem à luz do dia. Por isso, não se iluda. A mim só poderás encontrar em teus pesadelos mais gostosos. Nas noites infernais é que me encontras. Sou da escuridão e nesse ambiente onde vives, todo pintado branco, cegaria.”Nesse momento entra o enfermeiro e diz: Moça está na hora de seu remédio. Por um segundo, um flash, a lucidez chega até ela. Dá-se conta de que não é fácil ter sonhos em um hospício. Melhor mesmo é se conformar com pesadelos e transformá-los em algo gostoso. O enfermeiro injeta uma dose cavalar de calmante em suas veias. Mais uma vez ela começa a criar um mundo, fatos e pessoas alienígenas. Efeito dos tranqüilizantes e das alucinações que começara a ter depois de muitos anos de internação e de alcolismo.

31/08/2007

Ontem a noite

Foto: Luiz Eduardo Robinson Achutti




Ontem à noite vi teu rastro de gelo atravessar meu rio de fogo. Foi fumaça pra todo lado! Evaporou-se a distância que se instalou entre teu corpo e o meu. Cruzou a tua frieza e o meu ardor. Senti a boca ferina sorrir de meus olhos felinos. Penetrou neles como uma serpente venenosa e eu nem tinha soro antiofídico. Quase morri ao ser picada pelo inesperado encontro! Por um triz me salvei. É que teu veneno já não é mais letal para meu corpo. Ao longo dos dias em que me evitaste fui adquirindo anticorpos. Isso! Anti-corpos. O meu e o teu. Não corpos. Apenas contornos dos beijos loucos que trocamos. Somente marcas das mordidas que deixastes em minha carne. Diluída lembrança dos loucos momentos em que a lua -envergonhada- testemunhava os atos libidinosos que praticamos ao relento. O teu veneno alucinou, mais uma vez, minha lucidez. Quase viro poeta diante de ti! Ao rever teus cabelos ao vento, senti vontade de gritar um poema que fizesse jus ao brilho que deles irradia. E nem sabes tudo isso que rasgou meus pensamentos quando, ontem à noite, te vi. E nem sabes que ando a escrever pensando em nós. E nem sabes. Nem sabes a falta que ainda me faz. Apesar dos anticorpos. Embora sejamos paradoxais. Ainda que não sejas meu. Mesmo que eu não seja tua. Teu veneno corre em minhas veias. Mas já não é fatal. Fatalidade foi te encontrar ontem à noite e ter que suportar a proximidade entre nós. À distância -nesse caso- é mais apropriada que a cruel verdade de que, mesmo ao meu lado, um abismo de mal entendidos separa teu entendimento da minha compreensão. E teu contorno se dissipa na imensidão da noite que te engole mais uma vez. Enquanto ias sumindo no suspiro da escuridão, descobri: não morri em tua desmedida aparição porque não passas de um espectro a rondar meus devaneios. Ainda que sejas real.