05/09/2007

O lado de lá


Foto: Hugo Tinoco






Era um simples dia cotidiano. Sol a pino, carros cortando as ruas numa velocidade alucinante, rostos desconhecidos, esquinas entupidas de gente parada na calçada esperando a oportunidade para chegar à faixa amarela. A ânsia das pessoas em atravessar a rua fazia parecer que o lado de lá era o outro mundo. O lado oposto da seria o portal para o lugar que sempre se quisera ir. Mas que nada! O que todos aspiravam mesmo era só cruzar a rua na frenética convulsão do tempo curto. Tão curto que os passos mal davam pra chegar do lado de lá. E por causa dos passos curtos ela esbarrou nele. Numa dessas esquinas enlatadas. Foi vontade pra todo lado! A dela e a dele. Curvaram-se para juntar os desejos espalhados no asfalto escaldante antes que o sinal ficasse verde e a esperança fosse embora à alta velocidade, matando o inesperado encontro tão esperado. Sim. Há muito tempo esperavam que o acaso se manifestasse. Mas numa cidade assim não é simples encontrar alguém que não se sabe nem o nome. Já decorria bom intervalo desde que tinham se visto em um bar. Daqueles em que as noites ébrias fazem transbordar fulgores que evaporam com os primeiros raios de sol a entrar pelas frestas das cortinas diáfanas que cobrem as vidraças. Num lampejo, seus olhos rasgaram as retinas como uma adaga transpassa o corpo. Os corpos intocados se encaixaram como um anel feito sob medida para uma mão singular. Única mesmo foi aquela noite perdida entre tantas regadas a qualquer ritmo. Nunca souberam dos abalos sísmicos causados no outro. E a vontade agora estava jogada na avenida....o sinal a qualquer momento iria abrir e poderia transformar em cacos o que se mantinha incólume no mais recôndito espaço de cada um. Droga! - pensava ela - Não vai dar tempo! Ele ruminava interiormente. E haja tentativa! O vento não ajudava. O sinal abre. Desesperados, começam a andar em sentidos opostos. Atravessam a faixa. O lado tão esperado, naquela hora não era o almejado. O tempo! O sinal! As vontades que ficaram dissecando sob o sol quente. O tempo curto! Não dava para ficar esperando um inesperado encontro. A cidade, o relógio, os compromissos não permitiam. E os olhos que rasgaram entranhas, os corpos moldados um para o outro - mesmo intocados - foram se perdendo por entre o turbilhão de gente aglutinada na calçada com uma ânsia tão frenética para chegar à faixa amarela e atravessar a rua que até parecia que o lado de lá era o lugar onde sempre se quisera estar. Mas eles sabiam que não era. Não o lado de lá. Talvez o meio, a metade da travessia onde os desejos se encontraram e se esbaldaram no asfalto quente. E ainda estavam lá gemendo, ardendo, agonizando. E ninguém sabia. Nem eles. O que tentaram juntar o tempo todo nada mais era que os documentos de trabalho guardados nas pastas que traziam em frente ao coração e que se espalharam quando tropeçaram. Não deu tempo pra saber de mais nada.


8 comentários:

Moacy Cirne disse...

Gostei. Um beijo.

Marcelo Cantalice Dias disse...

N�o se sabe se o gozo, o lamber do ded�o ficar� do lado de l� sabe-se s� que h� um inicio, um meio e um fim...Mas ser� que eles est�o de que lado?
Adorei prosear contigo!
Beijos e parab�ns

Pena disse...

Simpática Amiga:
Sabe, espelha muito bem o que o sentimento requer do quotidiano das pessoas.
Admirável como consegue delinear e escolher notavelmente palavras tão bonitas, ternas e doces.
Fiquei encantado como por magia envolvente e absoluta.
Adorei! Parabéns!
Resolvi visitá-la pelo comentário que fez no blog lindo e sensível da doce "Juli", minha eterna amiga.
Um Bem-Haja de ternura.
Beijos respeitadores e com muita estima
pena

Permite que coloque o seu link. Adoraria!
Voltarei sempre. Fica a promessa.
Gostei tanto. Passei a admirar o seu bom-gosto e a sua deslumbrante pessoa.

Anônimo disse...

Foi quase isso, mas não foi bem isso...o meu texto é mto antigo, já rodou mto porraí,mta gente já o leu, mas qdo vi o seu, lembrei dele e resolvi postá-lo em sua homenagem...rs. Beijo grande.

Claudinha ੴ disse...

Olá! Adorei sua visita!
Li sua prosa, gostei da imagem, vi a cena, os dois, a movimentação, a loucura da vida e dentro disto tudo o acaso manifestando-se. Acaso? Ah, eu creio que na hora certa tudo acontece... Beijão!
Vou conhecer sua poesia.

Anônimo disse...

Que lindo, essa cena do casal recolhendo papéis no chão é clássica, vc conseguiu dar uma cara nova e um lirismo impressionante!! Adorei, o texto, o blog, tudo aqui. Posso vir de novo?? rsrs.
Beijo grande!

benechaves disse...

Fernanda: sua prosa flui com o viço nas entrelinhas. E as palavras vão entrechocando-se entre coincidências ou não de uma existência.

Beijos robustos...

Paulo disse...

Gostei do desassossego de ter aqui estado!!!