17/10/2007

Germina


Vive de calmaria como lago sem correnteza, ancorando idílios no cais da sensatez. Nunca desvia das pegadas deixadas ao longo do caminho - que é sempre o mesmo - ou atiça vontades prisioneiras nas algemas que ela pôs. Temerosa de se lançar em qualquer coisa - permanece flutuando na nuvem ilusória que criou pra si.

Decorou de branco todo o ambiente para que as cores não excitassem as retinas e cobriu-se de muralhas arquitetadas com a argamassa das coisas apaixonantes que desprezou. Sentia proteção no acolchoado etéreo dessa morada altiva e incólume, como se fosse possível castelos no ar. Diariamente ensaia uma dança insípida ao som do silêncio mordaz – única companhia na masmorra de si.

Maria optou pelo exílio desde que Antonio partiu sem ao menos dizer adeus. A ataraxia, forma de suprir a falta deixada pelo contorno antes moldado ao seu. Ansiava pela ausência de dor, como se possível fosse viver sem ela. Não percebia que o revestimento auto-erigido, a mudez permanente e o balé solitário ao som do nada fincavam suas entranhas nas raízes do dissabor.

Depois de algum tempo persistindo nesse luto vão, a agonia dos olhos sedentos de vermelho-luxuriante transbordava pelas pálpebras. Notando a impossibilidade de fugir do interior borbulhante que tem – embora latente, não resiste.

Demole a carapaça que cobre o corpo, tinge de arco-íris seus arredores, canta pra ouvir a própria voz e algo germina do casulo - sai uma metamorfoseada moça de lábios carmim, com vestido decorado por lascívias cintilantes. O chamamento do mundo foi maior que o desprezo e o temor da dor.

Soube que vicissitudes são cordas pra tecer o enredo da vida e os acordes desse aprendizado ecoam violentamente nas planícies que decide conhecer e resistem nos vales dos planaltos esculpidos por ela. Quer ver o mundo de cima e fincar no cume de cada colina um sorriso de esperança e uma pegada sem destino.

Maria - que se afeiçoou aos seus fantasmas, agora borboleta errante nos ares do tempo. E nem tem receio de suas asas derreterem sob a quentura dos dias ou congelarem na frieza da noite. Destemida, enfrenta o vento da incerteza que lhe açoita inteira. Maria não é Amélia, mas virou mulher de verdade.







Imagem: Graça Loureiro

13 comentários:

Anônimo disse...

uma definitiva germinação :) lindo, uma imagem mais bela que a outra. o fato das asas derreterem é forte, parece coisa estar alheio à sustentação.

beijo beijo!

Anônimo disse...

belos textos em prosa! tem uma escrita direta, porém, não simples.. sabe dizer, e isso é bom!
belas imagens e ritmos.. realmente, o que germina..
avante!
beijos e saúde!

AB disse...

"Diariamente ensaia uma dança insípida ao som do silêncio mordaz – única companhia na masmorra de si..."
Você escreve coisas tão perfeitas, mas tão perfeitas, FERNANDA... Me encanto!

BABI SOLER disse...

bela descrição da hitória de Maria.

bom final de semana!

PAULO SANTOS disse...

passo apenas para te retibuir os afectos!
O tempo tem-me sido roubado! Para a semana haverá novidade no Interior!!!!!!

Um beijo para ti e para o nené (não me esqueci!!!!)
Um bom fim de semana para ti!
Agradeço-te o carinho e as visitas!!!!


Paulo

maria josé quintela disse...

história com fim feliz. e bem contada!

Pena disse...

Simpática Amiga:
A magia bela com que escreve as suas prosas poetisadas de encanto, podem bem dispensar certos fantasmas que acredito, vivamente, não existirem.
Possuí uma magia com que adorna o seu sentir e pensar que cativam e se propagam.
A Maria ou Amélia vive uma vida conturbada e distante que construio pelas circunstâncias desagradáveis da sua vida, transcritas aqui de forma real. Demasiado sentida e real! É bom que aconteça até porque a sua escrita é para uma elite. Concorda ou não? Ao mmesmo tempo, penso que esta personagem vive fictícia e irreal. Parece contrariar-me, mas tem dois lados. Como um heterónimo, penso, próprio de seres profundos, poetas, pensadores. Todos temos um pouco disso.
A sua personagem não é feliz, nem vive a felicidade, como você vive, com toda a certeza, porque a sua genialidade, talento e irrealidade não se misturam.
Excelente poder sobre as palavras que fluiem e cativam.
Adorei!
Beijinhos de encanto e amizade sinceras.

pena

benechaves disse...

Oi, linda: mais uma composição no binômio prosa/poesia. E sempre com a agudez de suas palavras. E a imagem, hum!, nem se fala...Com o bom aproveitamento constante.

Beijos germinados...

Márcio Hachmann disse...

Me tocou profundamente a introdução antes de nos apresentar Maria. Nos vales escavados há milênios tambem me encontro. Beijos. ;)

Juliana Cintra disse...

Uauu, mto bom Fer..
Metamorfose, transformação, sempre, sempre!!!

Adorei as imagens...

bjux linda!

Dilean de Bragança disse...

"...Decorou de branco todo o ambiente para que as cores não excitassem as retinas e cobriu-se de muralhas arquitetadas com a argamassa das coisas apaixonantes que desprezou..."

Que texto maravilhoso menina... Amei como sempre!

"Germina" em mim alegrias!!
Obgda pelo visitinha.
Bjus na alma.

O Profeta disse...

Uma descrição sui-geniris...gostei...


Doce beijo

ex-amnésico disse...

Muito bom ler um conto de libertação tão bonito! Tomara a vida imitasse a arte mais vezes, pouco importando que moral a história tenha...