Continua achando tudo sem graça e não vê nada além de mais uma noite solitária.
Trabalha exaustivamente até o fim do dia e vai para casa. Quando chega, toma a atitude de driblar seu destino e busca fazer algo diferente.
Arruma-se rápido como nunca.
Está com vontade de curtir a vida noturna. Sempre achou a noite mágica. Acreditava que nela tudo acontecia, até o impensável, o improvável, o imprevisto.
No momento em que tenta atravessar a rua em frente ao seu condomínio, passa um carro em alta velocidade. Quase lhe atropela. Por um triz não chegou sua hora. Dirige-se à faixa. Vai ser politicamente correta. À noite nos faz imprudente – pondera, mas naquele momento não quer se subjugar ao domínio notívago. Prefere ficar viva.
Movimenta-se para o bar mais movimentado de seu bairro ao encontro das amigas que batem ponto ali quase toda santa noite.
Entra.
O ambiente turvado pelos cigarros embaça sua visão por um instante. Observa todos os lados e localiza as colegas sentadas numa mesa de canto. Senta e começam um papo daqueles bem típicos de mulheres em mesa de bar: roupas, a fulana que fez lipo, o cara mais bonito sentado do outro lado, o caos na política brasileira e por aí vai. Mulheres conversam sobre tudo em uma mesa de bar.
Angélica precisa ir ao banheiro. Ao chegar, se olha no espelho e percebe quem nem colocou brincos. Decide pedir imediatamente um par emprestado para as companheiras.
Na saída, esbarra em uma mulher de ar misterioso. Parece uma bruxa com essa roupa lilás e olhos tão marcantes. Nossa! Senti até arrepios – pensa. E corre ao encontro de seu desespero - um par de brincos. Consegue com uma que sempre tem um extra na bolsa, para casos como esse.
Volta para colocá-los.
A dona com ar enigmático está pintando os grandes olhos de um preto profundo, tal qual uma noite sem estrelas. Posiciona-se ao lado da que parece uma feiticeira e essa começa a puxar assunto:
- Gosta de lápis preto nos olhos?
-Sim, gosto.
- Você quer emprestado? Precisa se pintar, seu rosto está muito desbotado.
Angélica se deu conta que a ansiedade em não passar mais uma noite como tantas outras, fez com que não se maquiasse.
-Aceito sim. Obrigada.
Depois desse breve diálogo, novamente aquele frêmito. Vou fazer xixi. Já tenho brincos e olhos pintados. Não preciso de mais nada - reflete.
Quando sai do boxe, uma de suas parceiras está lá. Observa que só as duas ocupam aquele espaço e pergunta:
- Andréa, você viu a moça de roxo que estava aqui?
- Não tinha ninguém quando entrei. Aliás, fiquei, forçadamente, observando essa entrada o tempo todo porque minha cadeira fica de frente para cá. Desde quando você veio à primeira vez e voltou para pegar os brincos, ninguém entrou ou saiu daqui. Além você, lógico.
- Mas não é possível! Foi ela quem me emprestou o lápis com que pintei os olhos.
Fica grilada com aquele assunto, mas resolve voltar pra mesa e curtir o bar com as amigas. Sorrir, conversa, toma cerveja além da conta. É tarde. Necessita ir para casa pois trabalha logo mais.
Despede-se e combinam outro encontro para a noite seguinte.
Volta pelo mesmo caminho. Mas depois de extrapolar com a ingestão de álcool, já não tem a mesma prudência. Ao invés de ir pela calçada, anda pelo meio-fio. Observa – em sua pouca lucidez – que quase não tem trânsito.
De repente surge um carro em alta velocidade. Ainda tenta escapar, mas não dá tempo.
A pancada foi tão forte que ela morre na mesma hora.
Não tinha como saber, mas a senhora de roxo e olhos breu era a Morte lhe rondando, louca por mais uma companhia. Não driblou, foi ao encontro de seu destino. Tinha mesmo que sair de casa.
Angélica só acertou uma coisa: à noite nos torna inconseqüentes e traz consigo o improvável, o imprevisto.
Quem poderia imaginar que ela fosse morrer naquele retorno para casa?Trajeto tantas vezes feito. Se ela tivesse ficado no aconchego de sua cama, ao menos sentiria tédio. Mortos é que não sentem nada.
O impensável aconteceu.